sexta-feira, 21 de agosto de 2015

António Ramos Rosa - A mulher feliz- Amo o teu túmido candor de astro - Para a Agripina - Figura

 
António Ramos Rosa
 
A mulher feliz

Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
 e os ventos empurraram-na, está ali, na perfeição redonda
 da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
 Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
 Só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada

É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
 um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
 Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
 Que lentas são as folhas largas e as areias!
 Que denso é este corpo, esta lua de argila!

Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
 fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
 Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
 Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
 Crescem, crescem os músculos da mais intima distância.

António Ramos Rosa, in Volante Verde , Moraes Editora, 1986

Amo o teu túmido candor de astro
 
Amo o teu túmido candor de astro
 a tua pura integridade delicada
 a tua permanente adolescência de segredo
 a tua fragilidade sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
 de um peito que pulsa e canta a sua chama
 que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
 ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
 porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
 que dure e flua nas tuas veias lentas
 e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
 para que sintas a verde frescura
 de um pomar de brancas cortesias
 porque é por ti que nasço
 porque amo o ouro vivo do teu rosto.

António Ramos Rosa,in O TEU ROSTO (Pedra Formosa , 1944)

Para a Agripina
 
Amanheceu a minha vida no teu rosto
 De uma doçura intensa e tão suave
 Como se um divino fundo nele brilhasse
 Eu era o que nascia soberanamente leve
 E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
 Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
 Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
 Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
 Por minha pele e por meu sangue
 Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
 E é porque existes que se levanta o mundo
 Em quotidianos prodígios
 Em que ao fundo brilha o horizonte certo.

António Ramos Rosa, in O TEU ROSTO (Ed. Pedra Formosa, 1944)

Figura
 
A tua figura desperta a minha energia subtil
e ascende à primeira forma sublime e simples.
Primavera do mundo e aromático barco
e na palma da mão a delicada inicial.

Neste instante as luzes são passagens transparentes
e eu coloco o teu ventre novamente na paisagem.

Venho de ti e vou para ti antes do primeiro jacto
num côncavo seio na cúpula do segredo,
que é tão fechado como a não respiração
e que se abre no rosto dos meus membros.

António Ramos Rosa


 

domingo, 16 de agosto de 2015

D. H. Lawrence - AZUL - BLUENESS

 
D. H. Lawrence
 
AZUL
 
D. H. Lawrence in " Os Animais Evangélicos e outros poemas.

Vindos da escuridão, por vezes agitada no seu sono,
Jactos de centelhas em fontes azuis surgem
Revelando um segredo e inúmeros segredos guardando.

Por vezes a escuridão apanhada numa roda
Atinge a velocidade de um sonho, e o azul do aço
Revela a escuridão embaladora, agora vertiginosa.

Sainda do invisível, torrentes de luminosas gotas azuis
Caem dos céus chuvosos, e luminosas colheitas azuis
De flores elevam-se até ao cimo da sua escada.

E todas as tonalidades de olhos azuis, surpreendentes,
O arco-íris arqueando-se nos céus,
Novas centelhas de prodígios surgem inesperados:

Todos estes seres puros vêm das ondas e da espuma do mar
Da escuridão abundante, que misteriosamente agitada
Rebenta num deslumbramento de vida, quando os golfinhos
/saltam do mar
Da meia-noite e o incendeiam até vermos a chama da sombra.

Versão original em Inglês abaixo.

BLUENESS

Out of the darkness, fretted sometimes in its sleeping
Jets of sparks in fountains of blue come leaping
To sight, revealing a secret, numberless secrets keeping.

Sometimes the darkness trapped within a wheel
Runs into speed like a dream, the blue of the steel
Showing the rocking darkness now a-reel.

And out of the inivisible, streams of bright blue drops
Rain from the showery heavens, and bright blue crops
Of flowers surge from below to their ladder-tops.

And all the manifold blue, amazing eyes,
The rainbow arching over in the skies,
New sparks of wonder opening in surprise:

All these pure things come foam and spray of the sea
Of Darkness abundant, which shaken mysteriously
Breaks into dazzle of living, as dolphins leap from the
/sea
Of midnight and shake it to fire, till the flame of the shadow we see.
 
 



 

sábado, 15 de agosto de 2015

Cecília Meireles - Venturosa de sonhar-te - A arte de ser feliz - Se eu fosse apenas...


Cecília Meireles

Venturosa de sonhar-te - Cecília Meireles


Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

-Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.

-Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


A arte de ser feliz - Cecília Meireles


Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como reflectidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Ás vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Se eu fosse apenas... - Cecília Meireles


Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
- de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil

Até quando terás,
minha alma,
esta doçura - Cecília Meireles


Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre - insegura - segura
como a flecha que segue a trajectória obscura,
fiel ao seu movimento, exacta em seu lugar...?

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


Por que nome chamaremos - Cecília Meireles


Por que nome chamaremos
quando nos sentirmos pálidos
sobre os abismos supremos?

De que rosto, olhar, instante,
veremos brilhar as âncoras
para as mãos agonizantes?

Que salvação vai ser essa,
com tão fortes asas súbitas,
na definitiva pressa?

Ó grande urgência do aflito!
Ecos de misericórdia
procuram lágrima e grito,

- andam nas ruas do mundo,
pondo sedas de silêncio
em lábios de moribundo.

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


Motivo - Cecília Meireles


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste :
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Melhores poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Américo Durão - Existo?- Tântalo - O último Soneto


Américo Durão

Existo? - Américo Durão



Cingindo esta mortalha de estamenha

Fiz voto e penitência de morrer,

Sem que os meus braços numa cruz sustenha,

Quando não baste a Fé para os suster!



Sigo, pálido asceta da montanha,

Na bíblia da Minha Alma absorto a ler

Meditações, sobre a tragédia estranha

Dos que passam na vida sem viver…



No meu convento desolado e frio,

Ecoa pelo claustro um som vazio:

Apalpo-me…procuro-me…tacteio…



Alongo os olhos pela sombra fora…

- São os passos de Alguém que Se ignora,

É sempre o mesmo nada, o mesmo anseio!



(Vitral da Minha Dor, 1921)



Eu - Américo Durão



O vago em Mim concebo e realizo,

Vivo no que há-de ser!

A minha vida é feita de impreciso,

E tenho-me esquecido de a viver!



Eu não tenho passado nem futuro.

Sei lá se vivo ou não!

Sou um sonho de Deus, uma visão.

Abraçando na vida um sonho escuro…



Sou o Passado em sombras, e o Futuro em brumas.

Não sou porque não sou, e mais não sei dizer!



- Alegrias são leves como espumas,

Mágoas são vidas no Inferno a arder!



Eu sou, Jesus, o eco do teu medo:

Por isso eu amo as coisas de que tremo…

Se existo, a minha vida é um degredo!

Por minhas mãos de escravo é que me algemo…



Mas não existo…

- Sonho errante de Alguém que muito amou,

Sou a sombra nostálgica de Cristo,

Sou tudo o que há-de vir, e já passou!



"Quem vive?", pergunto eu.

Meus olhos olham a esmo.

Ando a buscar-me no Céu!

- Sou o Sonho de Mim – Mesmo!



(Vitral da Minha Dor, 1917)



Silêncio - Américo Durão



Elegias de som dançam no ar.

São a voz do Silêncio agonizante,

Apercebida apenas no instante,

Em que o Silêncio cansa de falar.



Não há sombra nem luz, e oscilante,

Unge a penumbra Céu e Terra, e Mar!...

Cantos de Salomão, sem os cantar,

Ninguém melhor do que o Silêncio cante!



Ele é a voz das emoções supremas,

Incensos, cantos, orações, poemas,

Em si, tudo condensa e nos traduz!



Cantos da bruma soam doloridos…

Acordam para Além os meus sentidos,

E a sombra do Silêncio abre-se em luz!



(Vitral da Minha Dor, 1917)



Tântalo - Américo Durão



Se alongo um braço esvai-se tudo!... e a vida,

Cadáver que ao mar Jesus lançasse,

Na maré cheia desta dor, vencida

Lembra um astro que o fogo abandonasse!



Cai a chama do Sol adormecida:

Seu lívido clarão me inunda a face…

E acorda de mim tão branco, tão sumida,

Como se nos meus olhos se apagasse!



Impérios, oiro…a tudo ambicionava!

E agora sei que só me torturava

A dor sem nome de nascer vencido…



Quando em meu peito o sol florir um dia,

Já nestas mãos a rosa da alegria

Se desfolhou sem nunca ter abrido!



( Tântalo, Lisboa, 1921 )



O último Soneto - Américo Durão



É esse o meu soneto! – esse que um dia,

Eu prometi solene à minha Raça!

- Se passo, a minha sombra é já quem passa…

E eu nem a minha sombra conhecia!



Levo aos lábios a Morte numa taça

Em ritos da sagrada liturgia!

Tendo no rosto a altiva bizarria

Dos que sabem ser grandes na desgraça!



Já nem a estrela de alva tremeluz…

Amai a sombra e certo dia, ao poente,

Matei o Sol!...O Sol… O Sol… Jesus!



Ó mãe, hei-de igualar-me à outra gente,

Viver!...Anda arrancar-me desta cruz!

Quero viver…e amar – o Sol nascente!



( Tântalo, 1921 )

 


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Eugénio de Andrade - De Passagem


Eugénio de Andrade

De Passagem - Eugénio de Andrade

Vinham ao fim do dia,
Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.

Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e o ardor nos olhos fatigados.

Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome



 

Miguel Torga - Bartolomeu Dias


Miguel Torga

Bartolomeu Dias - Miguel Torga


Eu não cheguei ao fim.
Dobrei o Cabo, mas havia em mim
Um herói sem remate.

Quando os loiros da fama me sorriam,
Aceitei o debate
Do meu destino predestinado
Com singelos destinos que teriam
Um futuro apagado,
Fosse qual fosse a glória prometida.

E sempre que uma nau entrenta o mar e o teme,
E regressa vencida,
Sou eu que venho ao leme
Com a Índia perdida



 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ana Hatherly - Que é voar?


Ana Hatherly


Ana Hatherly - Que é voar?


Que é voar?

É só subir no ar,

levantar da terra o corpo,os pés?

Isso é que é voar?

Não.


Voar é libertar-me,

é parar no espaço inconsistente

é ser livre,leve,independente

é ter a alma separada de toda a existência

é não viver senão em não -vivência


E isso é voar?

Não.



Voar é humano

é transitório , momentâneo...



Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:

isso é partir

e não voltar.


 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Reinaldo Ferreira - Menina dos olhos tristes


Reinaldo Ferreira

Menina dos olhos tristes - Reinaldo Ferreira



Menina dos olhos tristes

O que tanto a faz chorar?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


Senhora de olhos cansados,

Por que a fatiga o tear?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


Vamos senhor pensativo,

Olhe o cachimbo a apagar.

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


Anda bem triste um amigo,

Uma carta o fez chorar.

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


A Lua, que é viajante,

É que nos pode informar.

- O soldadinho já volta

Do outro lado do mar.


O soldadinho já volta

Está mesmo a chegar.


Vem numa caixa de pinho.

Desta vez o soldadinho

Nunca mais se faz ao mar.





segunda-feira, 3 de agosto de 2015

José Gomes Ferreira - Aquela nuvem - Vivam, apenas - A poesia não é um dialecto - Vai-te poesia


José Gomes Ferreira


Aquela nuvem - José Gomes Ferreira


Aquela nuvem

Parece um cavalo...

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?

Mas já não é um cavalo,

É uma barca à vela.

Não faz mal.

Queria embarcar nela.

Aquela?

Mas já não é um navio,

É uma torre amarela

A vogar no frio

Onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.

Quero ter asas

Para a espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar

Donde voam as nuvens

Para ir numa delas

Tomar mil formas

Com sabor a sal

- Labirinto de sombras e de cisnes

No céu de água - sol - vento - luz concreto e irreal...


Vivam, apenas - José Gomes Ferreira


Vivam, apenas.

Sejam bons como o sol.

Livres como o vento

Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos

Que dão flores e frutos

Sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos

A transformar os espinhos

Em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.

Não sofram por causa dos cadáveres

Que só são belos

Quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.

A morte é para os mortos.


A poesia não é um dialecto - José Gomes Ferreira


A poesia não é um dialecto

para bocas irreais.

Nem o suor concreto

das palavras banais.

É talvez o sussurro daquele insecto

de que ninguém sabe os sinais.

Silêncio insurrecto.


Vai-te poesia - José Gomes Ferreira


Vai-te poesia!

Deixa-me ver friamente

a realidade nua

sem ninfas de iludir

ou violinos de lua.

Vai-te, Poesia!

Não transformes o mundo

descarnado e terrível

num céu de esquecer

com mendigos de nuvens

famintos de estrelas

e feridas a cheirarem a cravos

- enquanto os outros, os de carne verdadeira,

uivam em vão

a sua fome de cadeias

e de pão.

Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida

exacta e intolerável

neste planeta feito de carne humana a chorar

onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos

com bandeiras de lume nos olhos,

para fabricar sonhos

carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia! 



 

domingo, 2 de agosto de 2015

Carlos Drummond de Andrade - No Meio do Caminho - Procura da poesia - Para sempre


Carlos Drummond de Andrade


Para sempre - Carlos Drummond de Andrade


Por que Deus permite

Que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

É tempo sem hora,

Luz que não apaga

Quando sopra o vento

E chuva desaba,

Veludo escondido

Na pele enrugada,

Água pura, ar puro,

Puro pensamento.


Morrer acontece

Com o que é breve e passa

Sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

É eternidade!

Por que Deus se lembra

- mistério profundo -

De tirá-la um dia?


Fosse eu Rei do mundo,

Baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

Mãe ficará sempre

Junto do seu filho

E ele, velho embora,

Será pequenino

Feito grão de milho.


Procura da poesia - Carlos Drummond de Andrade


Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

Há calma e frescura na superfície intacta.


Hei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.


Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sobre a face neutra e te pergunta,

sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?


Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram da noite as palavras.

Ainda húmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


No Meio do Caminho - Carlos Drummond de Andrade


No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.


Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra. 


 

sábado, 1 de agosto de 2015

José Carlos Ary dos Santos - Os putos - Auto-Retrato - Desfolhada - A cidade é um chão de palavras pisadas -Epígrafe - Ecce Homo - Meu amor, meu amor - Poesia - Orgasmo


José Carlos Ary dos Santos


Os putos - José Carlos Ary dos Santos


Uma bola de pano, num charco

Um sorriso traquina, um chuto

Na ladeira a correr, um arco

O céu no olhar, dum puto.


Uma fisga que atira a esperança

Um pardal de calções, astuto

E a força de ser criança

Contra a força dum chui, que é bruto.


Parecem bandos de pardais à solta

Os putos, os putos

São como índios, capitães da malta

Os putos, os putos


Mas quando a tarde cai

Vai-se a revolta

Sentam-se ao colo do pai

É a ternura que volta

E ouvem-no a falar do homem novo

São os putos deste povo

A aprenderem a ser homens.


As caricas brilhando na mão

A vontade que salta ao eixo

Um puto que diz que não

Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola

Um pião na algibeira sem cor

Um puto que pede esmola

Porque a fome lhe abafa a dor.


Auto-Retrato - José Carlos Ary dos Santos


Poeta é certo mas de cetineta

fulgurante de mais para alguns olhos

bom artesão na arte da proveta

narciso de lombardas e repolhos.


Cozido à portuguesa mais as carnes

suculentas da auto-importância

com toicinho e talento ambas partes

do meu caldo entornado na infância.


Nos olhos uma folha de hortelã

que é verde como a esperança que amanhã

amanheça de vez a desventura.


Poeta de combate disparate

palavrão de machão no escaparate

porém morrendo aos poucos de ternura.


Desfolhada - José Carlos Ary dos Santos


Corpo de linho

lábios de mosto

meu corpo lindo

meu fogo posto.


Eira de milho

luar de Agosto

quem faz um filho

fá-lo por gosto.


É milho - rei

milho vermelho

cravo de carne

bago de amor

filho de um rei

que sendo velho

volta a nascer

quando há calor.


Minha palavra dita à luz do sol nascente

meu madrigal de madrugada

amor amor amor amor amor presente

em cada espiga desfolhada.


Minha raiz de pinho verde

meu céu azul tocando a serra

oh minha água e minha sede

oh mar ao sul da minha terra.


É trigo loiro

é além tejo

o meu país

neste momento

o sol o queima

o vento o beija

seara louca em movimento.


Minha palavra dita à luz do sol nascente

meu madrigal de madrugada

amor amor amor amor amor presente

em cada espiga desfolhada.


Olhos de amêndoa

cisterna escura

onde se alpendra

a desventura.


Moira escondida

moira encantada

lenda perdida

lenda encontrada.


Oh minha terra

minha aventura

casca de noz

desamparada.


Oh minha terra

minha lonjura

por mim perdida

por mim achada.


A cidade é um chão de palavras pisadas - José Carlos Ary dos Santos


A cidade é um chão de palavras pisadas

a palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradas

a palavra distância e a palavra medo.


A cidade é um saco um pulmão que respira

pela palavra água pela palavra brisa

A cidade é um poro um corpo que transpira

pela palavra sangue pela palavra ira.


A cidade tem praças de palavras abertas

como estátuas mandadas apear.

A cidade tem ruas de palavras desertas

como jardins mandados arrancar.


A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.

A palavra silêncio é uma rosa chá.

Não há céu de palavras que a cidade não cubra

não há rua de sons que a palavra não corra

à procura da sombra de uma luz que não há.


Epígrafe - José Carlos Ary dos Santos


De palavras não sei. Apenas tento

desvendar o seu lento movimento

quando passam ao longo do que invento

como pre-feitos blocos de cimento.


De palavras não sei. Apenas quero

retomar-lhes o peso a consistência

e com elas erguer a fogo e ferro

um palácio de força e resistência.


De palavras não sei. Por isso canto

em cada uma apenas outro tanto

do que sinto por dentro quando as digo.


Palavra que me lavra. Alfaia escrava.

De mim próprio matéria bruta e brava

--- expressão da multidão que está comigo.


Ecce Homo - José Carlos Ary dos Santos


Desbaratamos deuses, procurando

Um que nos satisfaça ou justifique.

Desbaratamos esperança, imaginando

Uma causa maior que nos explique.


Pensando nos secamos e perdemos

Esta força selvagem e secreta,

Esta semente agreste que trazemos

E gera heróis e homens e poetas.


Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo

Malhando-nos a carne, até que em brasa

Nossos sexos furiosos se confundam,


Nossos corpos pensantes se entrelacem

E sangue, raiva, desespero ou asa,

Os filhos que tivermos forem nossos.


Meu amor, meu amor - José Carlos Ary dos Santos


Meu amor meu amor

meu corpo em movimento

minha voz à procura

do seu próprio lamento.


Meu limão de amargura meu punhal a escrever

nós parámos o tempo não sabemos morrer

e nascemos nascemos

do nosso entristecer.


Meu amor meu amor

meu nó e sofrimento

minha mó de ternura

minha nau de tormento


este mar não tem cura este céu não tem ar

nós parámos o vento não sabemos nadar

e morremos morremos

devagar devagar.


Poesia - Orgasmo - José Carlos Ary dos Santos


De silabas de letras de fonemas

se faz a escrita. Não se faz um verso.

Tem de correr no corpo dos poemas

o sangue das artérias do universo.


Cada palavra há-de ser um grito.

Um murmúrio um gemido uma erecção

que transporte do humano ao infinito

a dor o fogo a flor a vibração.


A poesia é de mel ou de cicuta?

Quando um poeta se interroga e escuta

ouve ternura luta espanto ou espasmo?


Ouve como quiser seja o que for

fazer poemas é escrever amor

a poesia o que tem de ser é orgasmo.


Hilda Hilst- Do Desejo- Colada à tua boca a minha desordem - Que canto há de cantar o que perdura? - Que Este Amor Não Me Cegue Nem Me Siga - Trovas De Muito Amor Para Um Amado Senhor - Dez Chamamentos ao Amigo - Árias Pequenas. Para Bandolim


Do Desejo - Hilda Hilst


E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

(Do Desejo - 1992)


Colada à tua boca a minha desordem - Hilda Hilst



Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

O incompossível se fazendo ordem.

Colada à tua boca, mas descomedida

Árdua

Construtor de ilusões examino-te sôfrega

Como se fosses morrer colado à minha boca.

Como se fosse nascer

E tu fosses o dia magnânimo

Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

( Do Desejo - 1992)


Que canto há de cantar o que perdura? - Hilda Hilst


Que canto há de cantar o que perdura?

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.

Que mitos, meu amor, entre os lençóis:

O que tu pensas gozo é tão finito

E o que pensas amor é muito mais.

Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer?

(Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)


Que Este Amor Não Me Cegue Nem Me Siga - Hilda Hilst


Que este amor não me cegue nem me siga.

E de mim mesma nunca se aperceba.

Que me exclua de estar sendo perseguida

E do tormento

De só por ele me saber estar sendo.

Que o olhar não se perca nas tulipas

Pois formas tão perfeitas de beleza

Vêm do fulgor das trevas.

E o meu Senhor habita o rutilante escuro

De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente

E farta de fadigas. E de fragilidades tantas

Eu me faça pequena. E diminuta e tenra

Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


Trovas De Muito Amor Para Um Amado Senhor - Hilda Hilst


Nave

Ave

Moinho

E tudo mais serei

Para que seja leve

Meu passo

Em vosso caminho.

Dizeis que tenho vaidades.

E que no vosso entender

Mulheres de pouca idade

Que não se queiram perder

É preciso que não tenham

Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento

Flores e renda, cetins,

Se solto o cabelo ao vento

É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes

E a boca fresca e rosada.

E a vaidade só consente

Vaidades, se desejada.

E além de vós

Não desejo nada.

(Poesia: 1959-1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)


Dez Chamamentos ao Amigo - Hilda Hilst


Se te pareço nocturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

(Poesia: 1959-1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)


Árias Pequenas. Para Bandolim - Hilda Hilst


Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso. E ao meu lado

Te fazes árabe, me faço israelita

E nos cobrimos de beijos

E de flores

Antes que o mundo se acabe

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.


(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) -

Árias Pequenas. Para Bandolim - XI) 



 

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Ruy Belo - Água - E Tudo era possível- Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela - meus versos lavro-os ao rubro - A mão no arado - Breve Sonata em Sol [UM] (Menor, Claro)- Mas que sei eu


Água

Ruy Belo


Água, feita de volubilidade 

mãe das nuvens e do barro.

posso senti-la discreta

transparente inevitável.



Prisioneira gelada

dos refrigeradores,

vago itinerário dos peixes,

húmido túmulo dos detritos

que os homens repudiaram.



feita de angústia,

saíste dos olhos

para a estrada áspera

das rugas.



Ergues tua bandeira vermelha

no peito dos apunhalados.



Água,

hei-de beber-te comovido

na inodora volúpia

da tua acomodada transparência.



Embebes de esquecimento

os suicidas.



Tuas mãos rudes

agarram os continentes,

dissolvem os náufragos,

projectam no céu

os velames e as quilhas.



Bojo surdo e verde

cofre de algas e flibusteiros,

bactérias e diamantes.



Quero-te agora

inerte de presságios,

mera adolescente

nascida na terra,

filha perdida do azul



E Tudo era possível

Ruy Belo


Na minha juventude antes de ter saído

da casa de meus pais disposto a viajar

eu conhecia já o rebentar do mar

das páginas dos livros que já tinha lido

 
Chegava o mês de Maio e era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido

 
E tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

 
Só sei que tinha o poder duma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer



Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela

Ruy Belo


Crianças com toda a tristeza garantida pela vida

por ela consentida e abrangida e afinal

mais presente nos olhos do que o próprio olhar

tristeza tão pesada e concentrada como a pedra

crianças que algum mundo que não este nunca

tão poderosamente poderá matar

numa vida visivelmente ainda surpreendida

por ser coisa pequena embora coisa oposta ao nada

na forma diluída por exemplo de um reflexo do olhar

crianças criaturas que na superfície da infância

sobrenadam submersas crianças mais palavras que conversa

crianças tão confusas que confundem

em seu desprevenido abismo de surpresa

traduzido talvez apenas numas simples duas mãos caídas

quem nesta convenção de braços e relógios

já apenas conserva ainda acesa

a cru capacidade de às crianças consentir

um momento ingressar tão agressivas muito a seu pesar

na vida negação da vida apenas viva no adulto olhar

crianças que conturbam momentaneamente

quem é a morte toda condição de vida

quem é hábito e calma e só no olhar inquietação

crianças referência da infância e inocência

contradição unicamente consenti da

a quem sabe que só a morte é condição da vida

crianças que ao chegar já trazem olhos de partida

crianças causa de perturbação e readaptação

crianças coisas verdadeiramente incómodas até no

à-vontade

com que sem bem querer insubordinam a cidade

crianças causadoras de uma certa dor sentida ou pensada

em quem deixou a vida em divididos dias

crianças coisas tão profundas tão perdidas

crianças que traí muito bons dias


meus versos lavro-os ao rubro

Ruy Belo


meus versos lavro-os ao rubro

nesta página de terra

que abro em lábio. Descubro-

-lhe a voz que no fundo encerra.

 
Os versos que faço sou-os

A relha rasga-me a vida

e amarra os sonhos de voos

que eu tinha à terra ferida.

 
Poema que mais que escrevo

devo-to em vida. No húmus

e regos simples eu levo

os meus desvairados rumos.

 
Mas mais que poema meu

( que eu nunca soube palavra)

isto que dispo sou eu

Poeta não escrevas lavra.


A mão no arado

Ruy Belo


Feliz aquele que administra sabiamente

a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

 Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

 
Oh! como é triste envelhecer à porta

entretecer nas mãos um coração tardio

Oh como é triste arriscar em humanos regressos

o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão

ao longo do mar transbordante de nós

no demorado adeus da nossa condição

 
É triste no jardim a solidão do sol

vê-lo desde o rumor e as casas da cidade

até uma vaga promessa de rio

e a pequenina vida que se concede às unhas

Mais triste é termos de nascer e morrer

e haver árvores ao fim da rua

 
É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no Outono concluir

que era o verão a única estação

Passou o solitário vento e não o conhecemos

e não soubemos ir até ao fundo da verdura

como rios que sabem onde encontrar o mar

e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver

através de palavras de uma água para sempre dita

Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

 
Triste é comprar castanhas depois da tourada

entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro

e ter como futuro o asfalto e muita gente

e atrás a vida sem nenhuma infância

revendo tudo isto algum tempo depois

A tarde morre pelos dias fora

É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.


Breve Sonata em Sol [UM] (Menor, Claro)

Ruy Belo


A solidão da árvore sozinha

no campo do verão alentejano

é só mais solitária do que a minha

e teima ali na terra todo o ano

quando nem chuva ou vento já lhe fazem companhia

e o calor é tão triste como o é somente a alegria

Eu passo e passo muito mais que o próprio dia


Mas que sei eu

Ruy Belo


Mas que sei eu das folhas no outono

ao vento vorazmente arremessadas

quando eu passo pelas madrugadas

tal como passaria qualquer dono?

 
Eu sei que é vão o vento e lento o sono

e acabam coisas mal principiadas

no ínvio precipício das geadas

que pressinto no meu fundo abandono

 
Nenhum súbito súbdito lamenta

a dor de assim passar que me atormenta

e me ergue no ar como outra folha

 
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?

As coisas vêm vão e são tão vãs

como este olhar que ignoro que me olha 




sábado, 25 de julho de 2015

Alda Lara - Rumo - Prelúdio


Rumo

Alda Lara

É tempo, companheiro!
Caminhemos...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz 
Da Terra...

Nela,
O mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro e eu sou branco,
a mesma Terra nos gerou!

Vamos, companheiro...
É tempo!

Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e ao prazer dos teus prazeres
Irmão
Que as minhas mãos brancas se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras...
e o meu suor se junte ao teu
suor, quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor!

Vamos!
que outro oceano nos inflama...
Ouves?
É a Terra que nos chama...
É tempo, companheiro!
Caminhemos...


Prelúdio
 
Alda Lara

(para Lídia, minha velha ama negra)


Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.


Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas...


Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.


Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.


... Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...


Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra...


É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão de voltar!...


Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaços,
bem quieta, bem calada...


É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada...


In Resistência Africana-Antologia Poética, Diabril Editora, 1975 - Lisboa, Portugal

 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

André Carneiro- Ciência quântica da formiga- Insectos Alienígenas- Meu micro- Ondas Quânticas- Confesso


Ciência quântica da formiga

André Carneiro


Combino a relatividade geral

com o princípio da incerteza.

Troco buracos negros por brancos,

risco as singularidades,

contenho o universo

sem limites.

O infinito coloco

na curvatura

do espaço-tempo.

No lençol do mundo

costuro filamentos,

nas margens

ponho glúons e quarks,

faço a maquete

tridimensional

teórica.



Modelo em código,

não serve para o quarto,

nem ajuda o desespero

do encontro falho.

Sinto sede, fome e orgasmo.

Também corto a folha, coloco nas costas,

sigo túneis curvos,

deposito o alimento

para os fungos.



Volto ao sol da tarde,

gigantes e poderosos

esmagam a cada passo

meus irmãos carentes,

treino centúrias,

cresço além dos ratos e baratas,

reconstruo a biblioteca

de Alexandria,

invento a alma invisível

na carne transitória.


Insectos Alienígenas

André Carneiro


Não respondo imediatamente

cartas que recebo.

Olho-as de lado,

descubro outras tarefas,

o futuro romperia

se eu eliminasse os compromissos.



Nas letras soldo minhas veias,

amo os objectos,

barcos que me levam pelo dias.



Alheios defeitos doem,

porque são espelhos.

A sina me levantou em duas patas,

a coluna mal sustenta o orgulho

da cabeça erguida.



Tenho de lançar raízes,

inventar o sonho,

amar a fêmea, o filho, a arte.

Acabo antes de viajar no cosmos,

visitar planetas,

comparar insectos alienígenas,

talvez melhores.


André Carneiro

Meu micro


O micro pergunta

ansioso,

se quero apagar a memória.

Gravo SIM nas teclas trémulas.



Algum atirador emérito

nomeou Winchester

esta redonda massa cinzenta

que me alerta

falhas ortográficas

e acerta a estética

das palavras.



Nascido em priscas eras,

agora sou traço de luz verde

(ou vermelha)

nas máquinas bancárias,

dono magnético dos disquetes,

minha mão direita

segura o rato,

leva a flecha

através das janelas.



O micro ronrona

circunvoluções misteriosas,

absorve versos

que voltam na tela.



Um especialista de sistemas,

analiticamente freudiano,

soma lapsos, silêncios e

brancos,

para o diagnóstico cibernético

do meu trajecto humano.


Ondas Quânticas

André Carneiro


O universo só existe

quando observo.

Lento voo da asa,

teu andar de praia,

a nuvem gorda de água

desaparecem

se eu falho.

Penso, alto atravessa

e molda um fato.

O espelho me inventa,

a ruga não sou eu quem traço.



Comprimo o corpo de átomos

entro nos túneis de mundo

e passo.

Você sorri,

não acredita no insecto dourado

quando eu pouso na face.



Energias quânticas

modelam seios e braços.

Retrato não reconheço,

linhas do rosto,

corpo e vontade desmancho,

teço de novo, sou co-autor

sem nenhum quadro.



Explico o momento,

a nave tomba,

gotas translúcidas

giram prótons e neutrons

neste céu de Maio.



Sorriso de cinema vale

vinte e quatro passos

por segundo, o planeta gira

completamente tonto.

Dentro deste verso

sua boca muda,

deslizo de skate

no suave das nádegas,

aqueço veias

no ouro caminho do ventre.



A pequena morte pulveriza

meu corpo imortal,

o beijo solda lábios,

só a memória falece.

 
 Confesso

André Carneiro


Tenho oito teleclones,

dois em meu quarto,

na cozinha, no banheiro...

Minha secretária biónica

inventa recados

quando a solidão permanece em silêncio.



Não registro patentes

meu captador holográfico

copia átomos,

transmigro almas

escondidas

na massa cinzenta.



Projecto o aparelho,

réplica do

criador de mulheres

com ossos no peito.



Parafísico,

uso almofariz

e o silício do chip.

Pálpebras fechadas,

invento carne nas palmas,

calor do seio nos lábios

e o mundo desaba

em minha cabeça.


André Carneiro 




Corsino Fortes - Pecado Original- Girassol- De boca a barlavento -.E


Corsino Fortes

Pecado Original

Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...

Corsino Fortes


Girassol
 
Girassol
Rasga a tua indecisão
E liberta-te.

Vem colar
O teu destino
Ao suspiro
Deste hirto jasmim
Que foge ao vento
Como
Pensamento perdido.

Aderido
Aos teus flancos
Singram navios.

Navios sem mares
Sem rumos
De velas rotas.

Amanheceu!

Orça o teu leme
E entra em mim
Antes que o Sol
Te desoriente
Girassol!

Corsino Fortes


De boca a barlavento
 
I


Esta
a minha mão de milho & marulho
Este
o sól a gema E não
o esboroar do osso na bigorna
E embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
esta mão de semear
Há sempre
Pela artéria do meu sangue que g
o
t
e
j
a
De comarca em comarca
A árvore E o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
para dentro das violas


II


Poeta! todo o poema:
geometria de sangue & fonema
Escuto Escuta

Um pilão fala
árvores de fruto
ao meio do dia
E tambores
erguem
na colina
Um coração de terra batida
E lon longe
Do marulho á viola fria
Reconheço o bemol
Da mão doméstica
Que solfeja

Mar & monção mar & matrimónio
Pão pedra palmo de terra
Pão & património

Corsino Fortes


E

Os homens que nasceram da estrela da manhã
Assim foram
Árvore & Tambor pela alvorada
Plantar no lábio da tua porta

África
mais uma espiga mais um livro mais uma roda

Que
Do coração da revolta
A Pátria que nasce
Toda a semente é fraternidade que sangra

*

A espingarda que atinge o topo da colina
De cavilha & coronha

partida partidas
E dobra a espinha

como enxada entre duas ilhas
E fuma vigilante

o seu cachimbo de paz
Não é um mutilado de guerra
É raiz & esfera no seu tempo & modo
De pouca semente
E muita luta.

Corsino Fortes


 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Alexandre O'Neill - Divertimento com sinais ortográficos - Há palavras que nos beijam -


Alexandre O'Neill



Alexandre O'Neill - Divertimento com sinais ortográficos



...
Em aberto, em suspenso
Fica tudo o que digo.
E também o que faço é reticente...
:
Introduzimos, por vezes,
Frases nada agradáveis...
.
Depois de mim maiúscula
Ou espaço em branco
Contra o qual defendo os textos
,
Quando estou mal disposta
(E estou-o muitas vezes...)
Mudo o sentido às frases,
Complico tudo...
!
Não abuses de mim!
?
Serás capaz de responder a tudo o que pergunto?
( )
Quem nos dera bem juntos
Sem grandes apartes metidos entre nós!
^
Dou guarida e afecto
A vogal que procure um tecto.

Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado



Alexandre O'Neill - Há palavras que nos beijam



Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca



Alexandre O'Neill - Minuciosa formiga



Minuciosa formiga
Não tem que se lhe diga:
Leva a sua palhinha
Asinha, asinha.

Assim devera ser eu
E não esta cigarra
Que se põe a cantar
E me deita a perder.

Assim devera eu ser:
De patinhas no chão,
Formiguinha ao trabalho
E ao tostão.
Assim devera eu ser
Se não fora não querer.

Alexandre O'Neill, Feira Cabisbaixa 




Aguinaldo Fonseca - Mãe negra


Aguinaldo Fonseca

Mãe negra - Aguinaldo Fonseca

 

A mãe negra embala o filho.

Canta a remota canção

Que seus avós já cantavam

Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu

Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,

Que o céu

Às vezes também é negro.

No céu

Tão estrelado e festivo

Não há branco, não há preto,

Não há vermelho e amarelo.

—Todos são anjos e santos

Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa

Nem carinhos de ninguém...

A mãe negra é triste, triste,

E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu estrelado

E de repente sorri.

Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando

Com simpatia e saudade...







Agostinho Neto - Aspiração - Consciencialização


Agostinho Neto



Aspiração - Agostinho Neto

Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas

Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar

ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos

Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida

E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado

Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco

Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo

Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer

E nas sanzalas
nas casas
no subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.



Consciencialização - Agostinho Neto

Medo no ar!

Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada consciência
fervilha o temor de se ouvir a si mesma

A historia está a ser contada
de novo

Medo no ar!

Acontece que eu
homem humilde
ainda mais humilde na pele negra
me regresso África
para mim
com os olhos secos. 





Adolfo Casais Monteiro - A palavra impossível


Adolfo Casais Monteiro - A palavra impossível



Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.
Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.

Adolfo Casais Monteiro, Noite Aberta aos Quatro Ventos


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Exausto - Casamento - Adélia Prado


Exausto


Eu quero uma licença de dormir,

perdão pra descansar horas a fio,

sem ao menos sonhar

a leve palha de um pequeno sonho.


Quero o que antes da vida

foi o sono profundo das espécies,

a graça de um estado.

Semente.


Muito mais que raízes.



Adélia Prado


(in "Bagagem" São Paulo: Ed.Siciliano, 1993)



Casamento


Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.


Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.


É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão.


O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.


Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.



Adélia Prado 




Poema Começado no Fim - Adélia Prado


Poema Começado no Fim


Um corpo quer outro corpo.

Uma alma quer outra alma e seu corpo.

Este excesso de realidade me confunde.


Jonathan falando:

parece que estou num filme.

Se eu lhe dissesse você é estúpido

ele diria sou mesmo.

Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear

eu iria.


As casas baixas, as pessoas pobres,

e o sol da tarde,

imaginai o que era o sol da tarde

sobre a nossa fragilidade.


Vinha com Jonathan

pela rua mais torta da cidade.


O Caminho do Céu.


Adélia Prado


Pranto Para Comover Jonathan - Parâmetro - Adélia Prado


Pranto Para Comover Jonathan



Os diamantes são indestrutíveis?

Mais é meu amor.

O mar é imenso?

Meu amor é maior,

mais belo sem ornamentos

do que um campo de flores.


Mais triste do que a morte,

mais desesperançado

do que a onda batendo no rochedo,

mais tenaz que o rochedo.

Ama e nem sabe mais o que ama.



Adélia Prado



Parâmetro


Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isto sim, é consolo.



Adélia Prado


Dia - Objeto de Amar - Adélia Prado


Dia


As galinhas com susto abrem o bico

e param daquele jeito imóvel

- ia dizer imoral -

as barbelas e as cristas envermelhadas,

só as artérias palpitando no pescoço.


Uma mulher espantada com sexo:

mas gostando muito.


Adélia Prado



Objeto de Amar


De tal ordem é e tão precioso

o que devo dizer-lhes

que não posso guardá-lo

sem que me oprima a sensação de um roubo:

cu é lindo!


Fazei o que puderdes com esta dádiva.

Quanto a mim dou graças

pelo que agora sei

e, mais que perdôo, eu amo.



Adélia Prado


Poesia reunida - Adélia Prado


Poesia reunida


A formosura do teu rosto obriga-me

e não ouso em tua presença

ou à tua simples lembrança

recusar-me ao esmero de permanecer contemplável.


Quisera olhar fixamente a tua cara,

como fazem comigo soldados e choferes de ônibus.


Mas não tenho coragem,

olho só tua mão,

a unha polida olho, olho, olho e é quanto basta

pra alimentar fogo, mel e veneno deste amor incansável

que tudo rói e banha e torna apetecível:

cadeiras, desembocaduras de esgotos,

idéia de morte, gripe, vestido, sapatos,

aquela tarde de sábado,

esta que morre agora antes da mesa pacífica:

ovos cozidos, tomates,

fome dos ângulos duros de tua cara de estátua.


Recolho tamancos, flauta, molho de flores, resinas,

rispidez de teu lábio que suporto com dor,

e mais retábulos, faca, tudo serve e é estilete,

lâmina encostada em teu peito.

Fala.


Fala sem orgulho ou medo

que à força de pensar em mim sonhou comigo

e passou o dia esquisito,

o coração em sobressaltos à campainha da porta,

disposto à benignidade, ao ridículo, à doçura.

Fala.


Nem é preciso que amor seja a palavra.

"Penso em você" – me diz e estancarei os féretros,

tão grande é a minha paixão.



Adélia Prado