sábado, 1 de agosto de 2015

José Carlos Ary dos Santos - Os putos - Auto-Retrato - Desfolhada - A cidade é um chão de palavras pisadas -Epígrafe - Ecce Homo - Meu amor, meu amor - Poesia - Orgasmo


José Carlos Ary dos Santos


Os putos - José Carlos Ary dos Santos


Uma bola de pano, num charco

Um sorriso traquina, um chuto

Na ladeira a correr, um arco

O céu no olhar, dum puto.


Uma fisga que atira a esperança

Um pardal de calções, astuto

E a força de ser criança

Contra a força dum chui, que é bruto.


Parecem bandos de pardais à solta

Os putos, os putos

São como índios, capitães da malta

Os putos, os putos


Mas quando a tarde cai

Vai-se a revolta

Sentam-se ao colo do pai

É a ternura que volta

E ouvem-no a falar do homem novo

São os putos deste povo

A aprenderem a ser homens.


As caricas brilhando na mão

A vontade que salta ao eixo

Um puto que diz que não

Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola

Um pião na algibeira sem cor

Um puto que pede esmola

Porque a fome lhe abafa a dor.


Auto-Retrato - José Carlos Ary dos Santos


Poeta é certo mas de cetineta

fulgurante de mais para alguns olhos

bom artesão na arte da proveta

narciso de lombardas e repolhos.


Cozido à portuguesa mais as carnes

suculentas da auto-importância

com toicinho e talento ambas partes

do meu caldo entornado na infância.


Nos olhos uma folha de hortelã

que é verde como a esperança que amanhã

amanheça de vez a desventura.


Poeta de combate disparate

palavrão de machão no escaparate

porém morrendo aos poucos de ternura.


Desfolhada - José Carlos Ary dos Santos


Corpo de linho

lábios de mosto

meu corpo lindo

meu fogo posto.


Eira de milho

luar de Agosto

quem faz um filho

fá-lo por gosto.


É milho - rei

milho vermelho

cravo de carne

bago de amor

filho de um rei

que sendo velho

volta a nascer

quando há calor.


Minha palavra dita à luz do sol nascente

meu madrigal de madrugada

amor amor amor amor amor presente

em cada espiga desfolhada.


Minha raiz de pinho verde

meu céu azul tocando a serra

oh minha água e minha sede

oh mar ao sul da minha terra.


É trigo loiro

é além tejo

o meu país

neste momento

o sol o queima

o vento o beija

seara louca em movimento.


Minha palavra dita à luz do sol nascente

meu madrigal de madrugada

amor amor amor amor amor presente

em cada espiga desfolhada.


Olhos de amêndoa

cisterna escura

onde se alpendra

a desventura.


Moira escondida

moira encantada

lenda perdida

lenda encontrada.


Oh minha terra

minha aventura

casca de noz

desamparada.


Oh minha terra

minha lonjura

por mim perdida

por mim achada.


A cidade é um chão de palavras pisadas - José Carlos Ary dos Santos


A cidade é um chão de palavras pisadas

a palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradas

a palavra distância e a palavra medo.


A cidade é um saco um pulmão que respira

pela palavra água pela palavra brisa

A cidade é um poro um corpo que transpira

pela palavra sangue pela palavra ira.


A cidade tem praças de palavras abertas

como estátuas mandadas apear.

A cidade tem ruas de palavras desertas

como jardins mandados arrancar.


A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.

A palavra silêncio é uma rosa chá.

Não há céu de palavras que a cidade não cubra

não há rua de sons que a palavra não corra

à procura da sombra de uma luz que não há.


Epígrafe - José Carlos Ary dos Santos


De palavras não sei. Apenas tento

desvendar o seu lento movimento

quando passam ao longo do que invento

como pre-feitos blocos de cimento.


De palavras não sei. Apenas quero

retomar-lhes o peso a consistência

e com elas erguer a fogo e ferro

um palácio de força e resistência.


De palavras não sei. Por isso canto

em cada uma apenas outro tanto

do que sinto por dentro quando as digo.


Palavra que me lavra. Alfaia escrava.

De mim próprio matéria bruta e brava

--- expressão da multidão que está comigo.


Ecce Homo - José Carlos Ary dos Santos


Desbaratamos deuses, procurando

Um que nos satisfaça ou justifique.

Desbaratamos esperança, imaginando

Uma causa maior que nos explique.


Pensando nos secamos e perdemos

Esta força selvagem e secreta,

Esta semente agreste que trazemos

E gera heróis e homens e poetas.


Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo

Malhando-nos a carne, até que em brasa

Nossos sexos furiosos se confundam,


Nossos corpos pensantes se entrelacem

E sangue, raiva, desespero ou asa,

Os filhos que tivermos forem nossos.


Meu amor, meu amor - José Carlos Ary dos Santos


Meu amor meu amor

meu corpo em movimento

minha voz à procura

do seu próprio lamento.


Meu limão de amargura meu punhal a escrever

nós parámos o tempo não sabemos morrer

e nascemos nascemos

do nosso entristecer.


Meu amor meu amor

meu nó e sofrimento

minha mó de ternura

minha nau de tormento


este mar não tem cura este céu não tem ar

nós parámos o vento não sabemos nadar

e morremos morremos

devagar devagar.


Poesia - Orgasmo - José Carlos Ary dos Santos


De silabas de letras de fonemas

se faz a escrita. Não se faz um verso.

Tem de correr no corpo dos poemas

o sangue das artérias do universo.


Cada palavra há-de ser um grito.

Um murmúrio um gemido uma erecção

que transporte do humano ao infinito

a dor o fogo a flor a vibração.


A poesia é de mel ou de cicuta?

Quando um poeta se interroga e escuta

ouve ternura luta espanto ou espasmo?


Ouve como quiser seja o que for

fazer poemas é escrever amor

a poesia o que tem de ser é orgasmo.


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