sexta-feira, 31 de julho de 2015

Ruy Belo - Água - E Tudo era possível- Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela - meus versos lavro-os ao rubro - A mão no arado - Breve Sonata em Sol [UM] (Menor, Claro)- Mas que sei eu


Água

Ruy Belo


Água, feita de volubilidade 

mãe das nuvens e do barro.

posso senti-la discreta

transparente inevitável.



Prisioneira gelada

dos refrigeradores,

vago itinerário dos peixes,

húmido túmulo dos detritos

que os homens repudiaram.



feita de angústia,

saíste dos olhos

para a estrada áspera

das rugas.



Ergues tua bandeira vermelha

no peito dos apunhalados.



Água,

hei-de beber-te comovido

na inodora volúpia

da tua acomodada transparência.



Embebes de esquecimento

os suicidas.



Tuas mãos rudes

agarram os continentes,

dissolvem os náufragos,

projectam no céu

os velames e as quilhas.



Bojo surdo e verde

cofre de algas e flibusteiros,

bactérias e diamantes.



Quero-te agora

inerte de presságios,

mera adolescente

nascida na terra,

filha perdida do azul



E Tudo era possível

Ruy Belo


Na minha juventude antes de ter saído

da casa de meus pais disposto a viajar

eu conhecia já o rebentar do mar

das páginas dos livros que já tinha lido

 
Chegava o mês de Maio e era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido

 
E tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

 
Só sei que tinha o poder duma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer



Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela

Ruy Belo


Crianças com toda a tristeza garantida pela vida

por ela consentida e abrangida e afinal

mais presente nos olhos do que o próprio olhar

tristeza tão pesada e concentrada como a pedra

crianças que algum mundo que não este nunca

tão poderosamente poderá matar

numa vida visivelmente ainda surpreendida

por ser coisa pequena embora coisa oposta ao nada

na forma diluída por exemplo de um reflexo do olhar

crianças criaturas que na superfície da infância

sobrenadam submersas crianças mais palavras que conversa

crianças tão confusas que confundem

em seu desprevenido abismo de surpresa

traduzido talvez apenas numas simples duas mãos caídas

quem nesta convenção de braços e relógios

já apenas conserva ainda acesa

a cru capacidade de às crianças consentir

um momento ingressar tão agressivas muito a seu pesar

na vida negação da vida apenas viva no adulto olhar

crianças que conturbam momentaneamente

quem é a morte toda condição de vida

quem é hábito e calma e só no olhar inquietação

crianças referência da infância e inocência

contradição unicamente consenti da

a quem sabe que só a morte é condição da vida

crianças que ao chegar já trazem olhos de partida

crianças causa de perturbação e readaptação

crianças coisas verdadeiramente incómodas até no

à-vontade

com que sem bem querer insubordinam a cidade

crianças causadoras de uma certa dor sentida ou pensada

em quem deixou a vida em divididos dias

crianças coisas tão profundas tão perdidas

crianças que traí muito bons dias


meus versos lavro-os ao rubro

Ruy Belo


meus versos lavro-os ao rubro

nesta página de terra

que abro em lábio. Descubro-

-lhe a voz que no fundo encerra.

 
Os versos que faço sou-os

A relha rasga-me a vida

e amarra os sonhos de voos

que eu tinha à terra ferida.

 
Poema que mais que escrevo

devo-to em vida. No húmus

e regos simples eu levo

os meus desvairados rumos.

 
Mas mais que poema meu

( que eu nunca soube palavra)

isto que dispo sou eu

Poeta não escrevas lavra.


A mão no arado

Ruy Belo


Feliz aquele que administra sabiamente

a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

 Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

 
Oh! como é triste envelhecer à porta

entretecer nas mãos um coração tardio

Oh como é triste arriscar em humanos regressos

o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão

ao longo do mar transbordante de nós

no demorado adeus da nossa condição

 
É triste no jardim a solidão do sol

vê-lo desde o rumor e as casas da cidade

até uma vaga promessa de rio

e a pequenina vida que se concede às unhas

Mais triste é termos de nascer e morrer

e haver árvores ao fim da rua

 
É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no Outono concluir

que era o verão a única estação

Passou o solitário vento e não o conhecemos

e não soubemos ir até ao fundo da verdura

como rios que sabem onde encontrar o mar

e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver

através de palavras de uma água para sempre dita

Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

 
Triste é comprar castanhas depois da tourada

entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro

e ter como futuro o asfalto e muita gente

e atrás a vida sem nenhuma infância

revendo tudo isto algum tempo depois

A tarde morre pelos dias fora

É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.


Breve Sonata em Sol [UM] (Menor, Claro)

Ruy Belo


A solidão da árvore sozinha

no campo do verão alentejano

é só mais solitária do que a minha

e teima ali na terra todo o ano

quando nem chuva ou vento já lhe fazem companhia

e o calor é tão triste como o é somente a alegria

Eu passo e passo muito mais que o próprio dia


Mas que sei eu

Ruy Belo


Mas que sei eu das folhas no outono

ao vento vorazmente arremessadas

quando eu passo pelas madrugadas

tal como passaria qualquer dono?

 
Eu sei que é vão o vento e lento o sono

e acabam coisas mal principiadas

no ínvio precipício das geadas

que pressinto no meu fundo abandono

 
Nenhum súbito súbdito lamenta

a dor de assim passar que me atormenta

e me ergue no ar como outra folha

 
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?

As coisas vêm vão e são tão vãs

como este olhar que ignoro que me olha 




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