sexta-feira, 21 de agosto de 2015

António Ramos Rosa - A mulher feliz- Amo o teu túmido candor de astro - Para a Agripina - Figura

 
António Ramos Rosa
 
A mulher feliz

Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
 e os ventos empurraram-na, está ali, na perfeição redonda
 da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
 Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
 Só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada

É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
 um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
 Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
 Que lentas são as folhas largas e as areias!
 Que denso é este corpo, esta lua de argila!

Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
 fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
 Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
 Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
 Crescem, crescem os músculos da mais intima distância.

António Ramos Rosa, in Volante Verde , Moraes Editora, 1986

Amo o teu túmido candor de astro
 
Amo o teu túmido candor de astro
 a tua pura integridade delicada
 a tua permanente adolescência de segredo
 a tua fragilidade sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
 de um peito que pulsa e canta a sua chama
 que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
 ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
 porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
 que dure e flua nas tuas veias lentas
 e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
 para que sintas a verde frescura
 de um pomar de brancas cortesias
 porque é por ti que nasço
 porque amo o ouro vivo do teu rosto.

António Ramos Rosa,in O TEU ROSTO (Pedra Formosa , 1944)

Para a Agripina
 
Amanheceu a minha vida no teu rosto
 De uma doçura intensa e tão suave
 Como se um divino fundo nele brilhasse
 Eu era o que nascia soberanamente leve
 E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
 Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
 Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
 Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
 Por minha pele e por meu sangue
 Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
 E é porque existes que se levanta o mundo
 Em quotidianos prodígios
 Em que ao fundo brilha o horizonte certo.

António Ramos Rosa, in O TEU ROSTO (Ed. Pedra Formosa, 1944)

Figura
 
A tua figura desperta a minha energia subtil
e ascende à primeira forma sublime e simples.
Primavera do mundo e aromático barco
e na palma da mão a delicada inicial.

Neste instante as luzes são passagens transparentes
e eu coloco o teu ventre novamente na paisagem.

Venho de ti e vou para ti antes do primeiro jacto
num côncavo seio na cúpula do segredo,
que é tão fechado como a não respiração
e que se abre no rosto dos meus membros.

António Ramos Rosa


 

domingo, 16 de agosto de 2015

D. H. Lawrence - AZUL - BLUENESS

 
D. H. Lawrence
 
AZUL
 
D. H. Lawrence in " Os Animais Evangélicos e outros poemas.

Vindos da escuridão, por vezes agitada no seu sono,
Jactos de centelhas em fontes azuis surgem
Revelando um segredo e inúmeros segredos guardando.

Por vezes a escuridão apanhada numa roda
Atinge a velocidade de um sonho, e o azul do aço
Revela a escuridão embaladora, agora vertiginosa.

Sainda do invisível, torrentes de luminosas gotas azuis
Caem dos céus chuvosos, e luminosas colheitas azuis
De flores elevam-se até ao cimo da sua escada.

E todas as tonalidades de olhos azuis, surpreendentes,
O arco-íris arqueando-se nos céus,
Novas centelhas de prodígios surgem inesperados:

Todos estes seres puros vêm das ondas e da espuma do mar
Da escuridão abundante, que misteriosamente agitada
Rebenta num deslumbramento de vida, quando os golfinhos
/saltam do mar
Da meia-noite e o incendeiam até vermos a chama da sombra.

Versão original em Inglês abaixo.

BLUENESS

Out of the darkness, fretted sometimes in its sleeping
Jets of sparks in fountains of blue come leaping
To sight, revealing a secret, numberless secrets keeping.

Sometimes the darkness trapped within a wheel
Runs into speed like a dream, the blue of the steel
Showing the rocking darkness now a-reel.

And out of the inivisible, streams of bright blue drops
Rain from the showery heavens, and bright blue crops
Of flowers surge from below to their ladder-tops.

And all the manifold blue, amazing eyes,
The rainbow arching over in the skies,
New sparks of wonder opening in surprise:

All these pure things come foam and spray of the sea
Of Darkness abundant, which shaken mysteriously
Breaks into dazzle of living, as dolphins leap from the
/sea
Of midnight and shake it to fire, till the flame of the shadow we see.
 
 



 

sábado, 15 de agosto de 2015

Cecília Meireles - Venturosa de sonhar-te - A arte de ser feliz - Se eu fosse apenas...


Cecília Meireles

Venturosa de sonhar-te - Cecília Meireles


Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

-Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.

-Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


A arte de ser feliz - Cecília Meireles


Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como reflectidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Ás vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Se eu fosse apenas... - Cecília Meireles


Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
- de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil

Até quando terás,
minha alma,
esta doçura - Cecília Meireles


Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre - insegura - segura
como a flecha que segue a trajectória obscura,
fiel ao seu movimento, exacta em seu lugar...?

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


Por que nome chamaremos - Cecília Meireles


Por que nome chamaremos
quando nos sentirmos pálidos
sobre os abismos supremos?

De que rosto, olhar, instante,
veremos brilhar as âncoras
para as mãos agonizantes?

Que salvação vai ser essa,
com tão fortes asas súbitas,
na definitiva pressa?

Ó grande urgência do aflito!
Ecos de misericórdia
procuram lágrima e grito,

- andam nas ruas do mundo,
pondo sedas de silêncio
em lábios de moribundo.

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


Motivo - Cecília Meireles


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste :
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Melhores poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Américo Durão - Existo?- Tântalo - O último Soneto


Américo Durão

Existo? - Américo Durão



Cingindo esta mortalha de estamenha

Fiz voto e penitência de morrer,

Sem que os meus braços numa cruz sustenha,

Quando não baste a Fé para os suster!



Sigo, pálido asceta da montanha,

Na bíblia da Minha Alma absorto a ler

Meditações, sobre a tragédia estranha

Dos que passam na vida sem viver…



No meu convento desolado e frio,

Ecoa pelo claustro um som vazio:

Apalpo-me…procuro-me…tacteio…



Alongo os olhos pela sombra fora…

- São os passos de Alguém que Se ignora,

É sempre o mesmo nada, o mesmo anseio!



(Vitral da Minha Dor, 1921)



Eu - Américo Durão



O vago em Mim concebo e realizo,

Vivo no que há-de ser!

A minha vida é feita de impreciso,

E tenho-me esquecido de a viver!



Eu não tenho passado nem futuro.

Sei lá se vivo ou não!

Sou um sonho de Deus, uma visão.

Abraçando na vida um sonho escuro…



Sou o Passado em sombras, e o Futuro em brumas.

Não sou porque não sou, e mais não sei dizer!



- Alegrias são leves como espumas,

Mágoas são vidas no Inferno a arder!



Eu sou, Jesus, o eco do teu medo:

Por isso eu amo as coisas de que tremo…

Se existo, a minha vida é um degredo!

Por minhas mãos de escravo é que me algemo…



Mas não existo…

- Sonho errante de Alguém que muito amou,

Sou a sombra nostálgica de Cristo,

Sou tudo o que há-de vir, e já passou!



"Quem vive?", pergunto eu.

Meus olhos olham a esmo.

Ando a buscar-me no Céu!

- Sou o Sonho de Mim – Mesmo!



(Vitral da Minha Dor, 1917)



Silêncio - Américo Durão



Elegias de som dançam no ar.

São a voz do Silêncio agonizante,

Apercebida apenas no instante,

Em que o Silêncio cansa de falar.



Não há sombra nem luz, e oscilante,

Unge a penumbra Céu e Terra, e Mar!...

Cantos de Salomão, sem os cantar,

Ninguém melhor do que o Silêncio cante!



Ele é a voz das emoções supremas,

Incensos, cantos, orações, poemas,

Em si, tudo condensa e nos traduz!



Cantos da bruma soam doloridos…

Acordam para Além os meus sentidos,

E a sombra do Silêncio abre-se em luz!



(Vitral da Minha Dor, 1917)



Tântalo - Américo Durão



Se alongo um braço esvai-se tudo!... e a vida,

Cadáver que ao mar Jesus lançasse,

Na maré cheia desta dor, vencida

Lembra um astro que o fogo abandonasse!



Cai a chama do Sol adormecida:

Seu lívido clarão me inunda a face…

E acorda de mim tão branco, tão sumida,

Como se nos meus olhos se apagasse!



Impérios, oiro…a tudo ambicionava!

E agora sei que só me torturava

A dor sem nome de nascer vencido…



Quando em meu peito o sol florir um dia,

Já nestas mãos a rosa da alegria

Se desfolhou sem nunca ter abrido!



( Tântalo, Lisboa, 1921 )



O último Soneto - Américo Durão



É esse o meu soneto! – esse que um dia,

Eu prometi solene à minha Raça!

- Se passo, a minha sombra é já quem passa…

E eu nem a minha sombra conhecia!



Levo aos lábios a Morte numa taça

Em ritos da sagrada liturgia!

Tendo no rosto a altiva bizarria

Dos que sabem ser grandes na desgraça!



Já nem a estrela de alva tremeluz…

Amai a sombra e certo dia, ao poente,

Matei o Sol!...O Sol… O Sol… Jesus!



Ó mãe, hei-de igualar-me à outra gente,

Viver!...Anda arrancar-me desta cruz!

Quero viver…e amar – o Sol nascente!



( Tântalo, 1921 )

 


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Eugénio de Andrade - De Passagem


Eugénio de Andrade

De Passagem - Eugénio de Andrade

Vinham ao fim do dia,
Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.

Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e o ardor nos olhos fatigados.

Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome



 

Miguel Torga - Bartolomeu Dias


Miguel Torga

Bartolomeu Dias - Miguel Torga


Eu não cheguei ao fim.
Dobrei o Cabo, mas havia em mim
Um herói sem remate.

Quando os loiros da fama me sorriam,
Aceitei o debate
Do meu destino predestinado
Com singelos destinos que teriam
Um futuro apagado,
Fosse qual fosse a glória prometida.

E sempre que uma nau entrenta o mar e o teme,
E regressa vencida,
Sou eu que venho ao leme
Com a Índia perdida



 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ana Hatherly - Que é voar?


Ana Hatherly


Ana Hatherly - Que é voar?


Que é voar?

É só subir no ar,

levantar da terra o corpo,os pés?

Isso é que é voar?

Não.


Voar é libertar-me,

é parar no espaço inconsistente

é ser livre,leve,independente

é ter a alma separada de toda a existência

é não viver senão em não -vivência


E isso é voar?

Não.



Voar é humano

é transitório , momentâneo...



Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:

isso é partir

e não voltar.


 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Reinaldo Ferreira - Menina dos olhos tristes


Reinaldo Ferreira

Menina dos olhos tristes - Reinaldo Ferreira



Menina dos olhos tristes

O que tanto a faz chorar?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


Senhora de olhos cansados,

Por que a fatiga o tear?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


Vamos senhor pensativo,

Olhe o cachimbo a apagar.

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


Anda bem triste um amigo,

Uma carta o fez chorar.

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.


A Lua, que é viajante,

É que nos pode informar.

- O soldadinho já volta

Do outro lado do mar.


O soldadinho já volta

Está mesmo a chegar.


Vem numa caixa de pinho.

Desta vez o soldadinho

Nunca mais se faz ao mar.





segunda-feira, 3 de agosto de 2015

José Gomes Ferreira - Aquela nuvem - Vivam, apenas - A poesia não é um dialecto - Vai-te poesia


José Gomes Ferreira


Aquela nuvem - José Gomes Ferreira


Aquela nuvem

Parece um cavalo...

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?

Mas já não é um cavalo,

É uma barca à vela.

Não faz mal.

Queria embarcar nela.

Aquela?

Mas já não é um navio,

É uma torre amarela

A vogar no frio

Onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.

Quero ter asas

Para a espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar

Donde voam as nuvens

Para ir numa delas

Tomar mil formas

Com sabor a sal

- Labirinto de sombras e de cisnes

No céu de água - sol - vento - luz concreto e irreal...


Vivam, apenas - José Gomes Ferreira


Vivam, apenas.

Sejam bons como o sol.

Livres como o vento

Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos

Que dão flores e frutos

Sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos

A transformar os espinhos

Em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.

Não sofram por causa dos cadáveres

Que só são belos

Quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.

A morte é para os mortos.


A poesia não é um dialecto - José Gomes Ferreira


A poesia não é um dialecto

para bocas irreais.

Nem o suor concreto

das palavras banais.

É talvez o sussurro daquele insecto

de que ninguém sabe os sinais.

Silêncio insurrecto.


Vai-te poesia - José Gomes Ferreira


Vai-te poesia!

Deixa-me ver friamente

a realidade nua

sem ninfas de iludir

ou violinos de lua.

Vai-te, Poesia!

Não transformes o mundo

descarnado e terrível

num céu de esquecer

com mendigos de nuvens

famintos de estrelas

e feridas a cheirarem a cravos

- enquanto os outros, os de carne verdadeira,

uivam em vão

a sua fome de cadeias

e de pão.

Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida

exacta e intolerável

neste planeta feito de carne humana a chorar

onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos

com bandeiras de lume nos olhos,

para fabricar sonhos

carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia! 



 

domingo, 2 de agosto de 2015

Carlos Drummond de Andrade - No Meio do Caminho - Procura da poesia - Para sempre


Carlos Drummond de Andrade


Para sempre - Carlos Drummond de Andrade


Por que Deus permite

Que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

É tempo sem hora,

Luz que não apaga

Quando sopra o vento

E chuva desaba,

Veludo escondido

Na pele enrugada,

Água pura, ar puro,

Puro pensamento.


Morrer acontece

Com o que é breve e passa

Sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

É eternidade!

Por que Deus se lembra

- mistério profundo -

De tirá-la um dia?


Fosse eu Rei do mundo,

Baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

Mãe ficará sempre

Junto do seu filho

E ele, velho embora,

Será pequenino

Feito grão de milho.


Procura da poesia - Carlos Drummond de Andrade


Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

Há calma e frescura na superfície intacta.


Hei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.


Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sobre a face neutra e te pergunta,

sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?


Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram da noite as palavras.

Ainda húmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


No Meio do Caminho - Carlos Drummond de Andrade


No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.


Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra. 


 

sábado, 1 de agosto de 2015

José Carlos Ary dos Santos - Os putos - Auto-Retrato - Desfolhada - A cidade é um chão de palavras pisadas -Epígrafe - Ecce Homo - Meu amor, meu amor - Poesia - Orgasmo


José Carlos Ary dos Santos


Os putos - José Carlos Ary dos Santos


Uma bola de pano, num charco

Um sorriso traquina, um chuto

Na ladeira a correr, um arco

O céu no olhar, dum puto.


Uma fisga que atira a esperança

Um pardal de calções, astuto

E a força de ser criança

Contra a força dum chui, que é bruto.


Parecem bandos de pardais à solta

Os putos, os putos

São como índios, capitães da malta

Os putos, os putos


Mas quando a tarde cai

Vai-se a revolta

Sentam-se ao colo do pai

É a ternura que volta

E ouvem-no a falar do homem novo

São os putos deste povo

A aprenderem a ser homens.


As caricas brilhando na mão

A vontade que salta ao eixo

Um puto que diz que não

Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola

Um pião na algibeira sem cor

Um puto que pede esmola

Porque a fome lhe abafa a dor.


Auto-Retrato - José Carlos Ary dos Santos


Poeta é certo mas de cetineta

fulgurante de mais para alguns olhos

bom artesão na arte da proveta

narciso de lombardas e repolhos.


Cozido à portuguesa mais as carnes

suculentas da auto-importância

com toicinho e talento ambas partes

do meu caldo entornado na infância.


Nos olhos uma folha de hortelã

que é verde como a esperança que amanhã

amanheça de vez a desventura.


Poeta de combate disparate

palavrão de machão no escaparate

porém morrendo aos poucos de ternura.


Desfolhada - José Carlos Ary dos Santos


Corpo de linho

lábios de mosto

meu corpo lindo

meu fogo posto.


Eira de milho

luar de Agosto

quem faz um filho

fá-lo por gosto.


É milho - rei

milho vermelho

cravo de carne

bago de amor

filho de um rei

que sendo velho

volta a nascer

quando há calor.


Minha palavra dita à luz do sol nascente

meu madrigal de madrugada

amor amor amor amor amor presente

em cada espiga desfolhada.


Minha raiz de pinho verde

meu céu azul tocando a serra

oh minha água e minha sede

oh mar ao sul da minha terra.


É trigo loiro

é além tejo

o meu país

neste momento

o sol o queima

o vento o beija

seara louca em movimento.


Minha palavra dita à luz do sol nascente

meu madrigal de madrugada

amor amor amor amor amor presente

em cada espiga desfolhada.


Olhos de amêndoa

cisterna escura

onde se alpendra

a desventura.


Moira escondida

moira encantada

lenda perdida

lenda encontrada.


Oh minha terra

minha aventura

casca de noz

desamparada.


Oh minha terra

minha lonjura

por mim perdida

por mim achada.


A cidade é um chão de palavras pisadas - José Carlos Ary dos Santos


A cidade é um chão de palavras pisadas

a palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradas

a palavra distância e a palavra medo.


A cidade é um saco um pulmão que respira

pela palavra água pela palavra brisa

A cidade é um poro um corpo que transpira

pela palavra sangue pela palavra ira.


A cidade tem praças de palavras abertas

como estátuas mandadas apear.

A cidade tem ruas de palavras desertas

como jardins mandados arrancar.


A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.

A palavra silêncio é uma rosa chá.

Não há céu de palavras que a cidade não cubra

não há rua de sons que a palavra não corra

à procura da sombra de uma luz que não há.


Epígrafe - José Carlos Ary dos Santos


De palavras não sei. Apenas tento

desvendar o seu lento movimento

quando passam ao longo do que invento

como pre-feitos blocos de cimento.


De palavras não sei. Apenas quero

retomar-lhes o peso a consistência

e com elas erguer a fogo e ferro

um palácio de força e resistência.


De palavras não sei. Por isso canto

em cada uma apenas outro tanto

do que sinto por dentro quando as digo.


Palavra que me lavra. Alfaia escrava.

De mim próprio matéria bruta e brava

--- expressão da multidão que está comigo.


Ecce Homo - José Carlos Ary dos Santos


Desbaratamos deuses, procurando

Um que nos satisfaça ou justifique.

Desbaratamos esperança, imaginando

Uma causa maior que nos explique.


Pensando nos secamos e perdemos

Esta força selvagem e secreta,

Esta semente agreste que trazemos

E gera heróis e homens e poetas.


Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo

Malhando-nos a carne, até que em brasa

Nossos sexos furiosos se confundam,


Nossos corpos pensantes se entrelacem

E sangue, raiva, desespero ou asa,

Os filhos que tivermos forem nossos.


Meu amor, meu amor - José Carlos Ary dos Santos


Meu amor meu amor

meu corpo em movimento

minha voz à procura

do seu próprio lamento.


Meu limão de amargura meu punhal a escrever

nós parámos o tempo não sabemos morrer

e nascemos nascemos

do nosso entristecer.


Meu amor meu amor

meu nó e sofrimento

minha mó de ternura

minha nau de tormento


este mar não tem cura este céu não tem ar

nós parámos o vento não sabemos nadar

e morremos morremos

devagar devagar.


Poesia - Orgasmo - José Carlos Ary dos Santos


De silabas de letras de fonemas

se faz a escrita. Não se faz um verso.

Tem de correr no corpo dos poemas

o sangue das artérias do universo.


Cada palavra há-de ser um grito.

Um murmúrio um gemido uma erecção

que transporte do humano ao infinito

a dor o fogo a flor a vibração.


A poesia é de mel ou de cicuta?

Quando um poeta se interroga e escuta

ouve ternura luta espanto ou espasmo?


Ouve como quiser seja o que for

fazer poemas é escrever amor

a poesia o que tem de ser é orgasmo.


Hilda Hilst- Do Desejo- Colada à tua boca a minha desordem - Que canto há de cantar o que perdura? - Que Este Amor Não Me Cegue Nem Me Siga - Trovas De Muito Amor Para Um Amado Senhor - Dez Chamamentos ao Amigo - Árias Pequenas. Para Bandolim


Do Desejo - Hilda Hilst


E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

(Do Desejo - 1992)


Colada à tua boca a minha desordem - Hilda Hilst



Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

O incompossível se fazendo ordem.

Colada à tua boca, mas descomedida

Árdua

Construtor de ilusões examino-te sôfrega

Como se fosses morrer colado à minha boca.

Como se fosse nascer

E tu fosses o dia magnânimo

Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

( Do Desejo - 1992)


Que canto há de cantar o que perdura? - Hilda Hilst


Que canto há de cantar o que perdura?

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.

Que mitos, meu amor, entre os lençóis:

O que tu pensas gozo é tão finito

E o que pensas amor é muito mais.

Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer?

(Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)


Que Este Amor Não Me Cegue Nem Me Siga - Hilda Hilst


Que este amor não me cegue nem me siga.

E de mim mesma nunca se aperceba.

Que me exclua de estar sendo perseguida

E do tormento

De só por ele me saber estar sendo.

Que o olhar não se perca nas tulipas

Pois formas tão perfeitas de beleza

Vêm do fulgor das trevas.

E o meu Senhor habita o rutilante escuro

De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente

E farta de fadigas. E de fragilidades tantas

Eu me faça pequena. E diminuta e tenra

Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


Trovas De Muito Amor Para Um Amado Senhor - Hilda Hilst


Nave

Ave

Moinho

E tudo mais serei

Para que seja leve

Meu passo

Em vosso caminho.

Dizeis que tenho vaidades.

E que no vosso entender

Mulheres de pouca idade

Que não se queiram perder

É preciso que não tenham

Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento

Flores e renda, cetins,

Se solto o cabelo ao vento

É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes

E a boca fresca e rosada.

E a vaidade só consente

Vaidades, se desejada.

E além de vós

Não desejo nada.

(Poesia: 1959-1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)


Dez Chamamentos ao Amigo - Hilda Hilst


Se te pareço nocturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

(Poesia: 1959-1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)


Árias Pequenas. Para Bandolim - Hilda Hilst


Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso. E ao meu lado

Te fazes árabe, me faço israelita

E nos cobrimos de beijos

E de flores

Antes que o mundo se acabe

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.


(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) -

Árias Pequenas. Para Bandolim - XI)