quarta-feira, 22 de julho de 2015

Poesia reunida - Adélia Prado


Poesia reunida


A formosura do teu rosto obriga-me

e não ouso em tua presença

ou à tua simples lembrança

recusar-me ao esmero de permanecer contemplável.


Quisera olhar fixamente a tua cara,

como fazem comigo soldados e choferes de ônibus.


Mas não tenho coragem,

olho só tua mão,

a unha polida olho, olho, olho e é quanto basta

pra alimentar fogo, mel e veneno deste amor incansável

que tudo rói e banha e torna apetecível:

cadeiras, desembocaduras de esgotos,

idéia de morte, gripe, vestido, sapatos,

aquela tarde de sábado,

esta que morre agora antes da mesa pacífica:

ovos cozidos, tomates,

fome dos ângulos duros de tua cara de estátua.


Recolho tamancos, flauta, molho de flores, resinas,

rispidez de teu lábio que suporto com dor,

e mais retábulos, faca, tudo serve e é estilete,

lâmina encostada em teu peito.

Fala.


Fala sem orgulho ou medo

que à força de pensar em mim sonhou comigo

e passou o dia esquisito,

o coração em sobressaltos à campainha da porta,

disposto à benignidade, ao ridículo, à doçura.

Fala.


Nem é preciso que amor seja a palavra.

"Penso em você" – me diz e estancarei os féretros,

tão grande é a minha paixão.



Adélia Prado



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