Água
Ruy Belo
Água, feita de volubilidade
mãe das nuvens e do barro.
posso senti-la discreta
transparente inevitável.
Prisioneira gelada
dos refrigeradores,
vago itinerário dos peixes,
húmido túmulo dos detritos
que os homens repudiaram.
feita de angústia,
saíste dos olhos
para a estrada áspera
das rugas.
Ergues tua bandeira vermelha
no peito dos apunhalados.
Água,
hei-de beber-te comovido
na inodora volúpia
da tua acomodada transparência.
Embebes de esquecimento
os suicidas.
Tuas mãos rudes
agarram os continentes,
dissolvem os náufragos,
projectam no céu
os velames e as quilhas.
Bojo surdo e verde
cofre de algas e flibusteiros,
bactérias e diamantes.
Quero-te agora
inerte de presságios,
mera adolescente
nascida na terra,
filha perdida do azul
E Tudo era possível
Ruy Belo
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Ruy Belo
Água, feita de volubilidade
mãe das nuvens e do barro.
posso senti-la discreta
transparente inevitável.
Prisioneira gelada
dos refrigeradores,
vago itinerário dos peixes,
húmido túmulo dos detritos
que os homens repudiaram.
feita de angústia,
saíste dos olhos
para a estrada áspera
das rugas.
Ergues tua bandeira vermelha
no peito dos apunhalados.
Água,
hei-de beber-te comovido
na inodora volúpia
da tua acomodada transparência.
Embebes de esquecimento
os suicidas.
Tuas mãos rudes
agarram os continentes,
dissolvem os náufragos,
projectam no céu
os velames e as quilhas.
Bojo surdo e verde
cofre de algas e flibusteiros,
bactérias e diamantes.
Quero-te agora
inerte de presságios,
mera adolescente
nascida na terra,
filha perdida do azul
E Tudo era possível
Ruy Belo
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de Maio e era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela
Ruy Belo
Crianças com toda a tristeza garantida pela vida
por ela consentida e abrangida e afinal
mais presente nos olhos do que o próprio olhar
tristeza tão pesada e concentrada como a pedra
crianças que algum mundo que não este nunca
tão poderosamente poderá matar
numa vida visivelmente ainda surpreendida
por ser coisa pequena embora coisa oposta ao nada
na forma diluída por exemplo de um reflexo do olhar
crianças criaturas que na superfície da infância
sobrenadam submersas crianças mais palavras que conversa
crianças tão confusas que confundem
em seu desprevenido abismo de surpresa
traduzido talvez apenas numas simples duas mãos caídas
quem nesta convenção de braços e relógios
já apenas conserva ainda acesa
a cru capacidade de às crianças consentir
um momento ingressar tão agressivas muito a seu pesar
na vida negação da vida apenas viva no adulto olhar
crianças que conturbam momentaneamente
quem é a morte toda condição de vida
quem é hábito e calma e só no olhar inquietação
crianças referência da infância e inocência
contradição unicamente consenti da
a quem sabe que só a morte é condição da vida
crianças que ao chegar já trazem olhos de partida
crianças causa de perturbação e readaptação
crianças coisas verdadeiramente incómodas até no
à-vontade
com que sem bem querer insubordinam a cidade
crianças causadoras de uma certa dor sentida ou pensada
em quem deixou a vida em divididos dias
crianças coisas tão profundas tão perdidas
crianças que traí muito bons dias
meus versos lavro-os ao rubro
Ruy Belo
meus versos lavro-os ao rubro
nesta página de terra
que abro em lábio. Descubro-
-lhe a voz que no fundo encerra.
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela
Ruy Belo
Crianças com toda a tristeza garantida pela vida
por ela consentida e abrangida e afinal
mais presente nos olhos do que o próprio olhar
tristeza tão pesada e concentrada como a pedra
crianças que algum mundo que não este nunca
tão poderosamente poderá matar
numa vida visivelmente ainda surpreendida
por ser coisa pequena embora coisa oposta ao nada
na forma diluída por exemplo de um reflexo do olhar
crianças criaturas que na superfície da infância
sobrenadam submersas crianças mais palavras que conversa
crianças tão confusas que confundem
em seu desprevenido abismo de surpresa
traduzido talvez apenas numas simples duas mãos caídas
quem nesta convenção de braços e relógios
já apenas conserva ainda acesa
a cru capacidade de às crianças consentir
um momento ingressar tão agressivas muito a seu pesar
na vida negação da vida apenas viva no adulto olhar
crianças que conturbam momentaneamente
quem é a morte toda condição de vida
quem é hábito e calma e só no olhar inquietação
crianças referência da infância e inocência
contradição unicamente consenti da
a quem sabe que só a morte é condição da vida
crianças que ao chegar já trazem olhos de partida
crianças causa de perturbação e readaptação
crianças coisas verdadeiramente incómodas até no
à-vontade
com que sem bem querer insubordinam a cidade
crianças causadoras de uma certa dor sentida ou pensada
em quem deixou a vida em divididos dias
crianças coisas tão profundas tão perdidas
crianças que traí muito bons dias
meus versos lavro-os ao rubro
Ruy Belo
meus versos lavro-os ao rubro
nesta página de terra
que abro em lábio. Descubro-
-lhe a voz que no fundo encerra.
Os versos que faço sou-os
A relha rasga-me a vida
e amarra os sonhos de voos
que eu tinha à terra ferida.
A relha rasga-me a vida
e amarra os sonhos de voos
que eu tinha à terra ferida.
Poema que mais que escrevo
devo-to em vida. No húmus
e regos simples eu levo
os meus desvairados rumos.
devo-to em vida. No húmus
e regos simples eu levo
os meus desvairados rumos.
Mas mais que poema meu
( que eu nunca soube palavra)
isto que dispo sou eu
Poeta não escrevas lavra.
A mão no arado
Ruy Belo
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
( que eu nunca soube palavra)
isto que dispo sou eu
Poeta não escrevas lavra.
A mão no arado
Ruy Belo
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no Outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no Outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
Breve Sonata em Sol [UM] (Menor, Claro)
Ruy Belo
A solidão da árvore sozinha
no campo do verão alentejano
é só mais solitária do que a minha
e teima ali na terra todo o ano
quando nem chuva ou vento já lhe fazem companhia
e o calor é tão triste como o é somente a alegria
Eu passo e passo muito mais que o próprio dia
Mas que sei eu
Ruy Belo
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
Breve Sonata em Sol [UM] (Menor, Claro)
Ruy Belo
A solidão da árvore sozinha
no campo do verão alentejano
é só mais solitária do que a minha
e teima ali na terra todo o ano
quando nem chuva ou vento já lhe fazem companhia
e o calor é tão triste como o é somente a alegria
Eu passo e passo muito mais que o próprio dia
Mas que sei eu
Ruy Belo
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha